ESPAÇO UM CONTO POR VEZ
SEMANA 7 - NÃO SEJA COMO O MEU PAI - DE EUCLIDES FRANKLIN
Euclides Franklin, é um escritor angolano. Com as obras: Turbulências na Estrada da Vida publicado em 2021, Salva-me Senhor em Março de 2024 e Mirai, A mulher que tocou Jesus, publicado em Novembro de 2024. Tendo as mesma constados entre os dez melhores lançamentos de conto, nos seus respectivos anos.
Além de ter escrito vários textos de sucesso: Ela não veio; saudades da amada (poemas), caminhos cruzados (dueto), Chuva de tomates, o dia, e Euclides Franklin de Angola (Crónicas). Participou em antologias e colectâneas.
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Não sejas como o meu pai
O amo, isso não nego. Estar consigo é tudo que mais quero, mas tenho medo.
Antes que chegasses em minha vida, não estava aberta ao amor; não acreditava em homem algum. Olhava para os homens e desprezava-os, enojavam-me totalmente. Todo homem que aproximava-se de mim, os via como um amargo e o que me tocava era como se estivesse a procurar a sua morte.
Mas aí chegaste, mudaste tudo em mim. Apaixonei-me por si desde o primeiro momento que o vi. Mas tive que fugir e ralhar-me por estar a sentir o que sentia ou o que não poderia sentir. Pois a princípio, pensei que serias o mesmo tipo de homem que me traumatizou e roubou a minha inocência ainda criança.
Por isso, escondi-me quando chegaste e corria sempre que se aproximavas. O meu coração mantinha encerrado, totalmente trancado e inacessível. Estava que nem uma montanha de gelo, era mais do que uma fortaleza impenetrável.
Mas com a sua doçura chegaste até ao meu coração; quebrando as correntes com seu amor; derretendo o gelo em mim e com a sua firmeza e persistência derrubaste a minha fortaleza.
Parabéns! Chegaste onde nunca ninguém chegou. Hoje entrego-me toda para si, mas por favor, uma coisa apenas o peço: — não sejas como o meu pai.
Não sejas como o homem que tratava a minha falecida mãe, como escrava. Ela esperava-o toda noite, enquanto ele só chegava de madrugada (isso se chegasse), totalmente embriagado, a fazer confusão. Exigindo comida de um dinheiro que nunca minha falecida mãe viu.
Usava e abusava dela como se de um objeto se tratasse. Tudo que queria de minha mãe era apenas comida e sexo, isso até ter encontrado outra fonte de satisfação dos seus perversos prazeres.
Eu via como a minha falecida mãe vivia, toda desgastada. Dona Maria, dizia que não lhe deixava, através dos filhos. Só não sábia que a sua caçula, negra de carapinha dura, de bochechas fofinhas, com o olhar brilhante, juntamente com o sorriso radiante de uma menina inocente, já não era mais inocente.
Os olhos agora eram de medo, nojo do seu próprio corpo e o sorriso se transformaram em prantos.
Dona Maria, após ter se preparado para sair as quatro da manhã com a sua banheira, como era de costume, prestes a pôr na cabeça, deixando todos ainda a dormir. Ficou assustada quando ouviu a minha voz trémula, em meio aos soluços a dizer:
— Mamãe, não vai. Fica comigo ou leva-me consigo à praça. Não quero ficar aqui com o papá. Por favor, leva-me consigo. Por favor, não me deixa com o papá, não me deixa... — implorava.
Minha mãe, ficou estática a ouvir-me, sem compreender a verdadeira razão de ter dito aquelas palavras em soluços, agarrada no seu pano. Mas pensou que seria apenas coisas de uma garotinha, ainda mais sendo a caçula.
O que ela não sabia, é que o papá havia me dito:
— Amanhã quando a sua mãe sair e os seus irmãos irem à
escola, o papá irá cuidar de si. Vamos brincar, fazendo de conta que és a mamã. Serás à minha mulher e eu serei o seu marido. Mas não fala à ninguém, será o nosso segredinho. — Deu-me um beijo na boca e depois um pacote de bolacha.
Minha mãe, ficou entre esse dilema: ir vender para trazer comida em casa ou ficar cuidando da sua bebé (como gostava de me chamar). Eu toda trémula àquelas horas e as lágrimas já me inundavam. Ela não estava percebendo nada do que estava se passando em minha cabeça.
Teve que ir, com o coração inquieto. Pelo caminho, a minha imagem trémula, ainda estava em sua mente, aquelas palavras ainda ecoavam em seus ouvidos: — Mamãe, não vai. Fica comigo ou leva-me consigo à praça. Não quero ficar aqui com o papá. Por favor, leva-me consigo. Por favor, não me deixa com o papá, não me deixa...
Ficou se perguntando durante o dia todo: — Por que aquele grito de desespero da minha bebé? Parecia um grito de socorro. Mas não deve ser nada de grave, deve ser apenas pela confusão que o Mingo fez ontem, que a deixou assim.
A minha falecida mãe, não compreendeu que aquele dia haveria de mudar toda minha vida.
Meu pai que nunca cuidou dos filhos. Apenas comigo se importava, quando aos meus seis anos, punha-me ao colo, acariciava-me e dava-me beijos na boca. Com os meus oito anos, passou visitar o meu quarto e com os dez já não era apenas meu quarto, mas passou a ser “nosso quarto[P1] .”
Na mesma casa, partilhava o mesmo homem com a minha falecida mãe, que por sinal, era o meu falecido pai.
Os dezoito anos que passei em prisão, foram insuficientes para me libertar dessa prisão. A prisão não me ajudou a superar.
Nunca permitia que alguém me tocasse, até chegares. Por si deixei toda dor e toda angústia. Hoje entrego-me toda, para si, sou sua, toma-me por completa. Mas por favor, uma coisa apenas lhe peço: — Não sejas como o meu falecido pai.
Diga não ao abuso de menores
Euclides Franklin
SEMANA 6 - NATAL NA PEDREIRA - DE MANUEL BATOCA
MANUEL ANTÓNIO LUIS BATOCA
O ilustre senhor Manuel Batoca nos presenteia neste Natal com o seu belo e sensível conto Natal na Pedreira. Às vésperas do Natal é uma leitura necessária para nos aproximarmos cada vez mais do verdadeiro sentido dessa data tão importante.
Manuel Batoca nasceu em 04/02/1954, na freguesia de Vilar Chão, Concelho de Vieira do Minho, Distrito de Braga (Portugal), onde reside. Frequentou o Seminário Monfortino em Fátima, tendo concluído o antigo 7.º ano dos Liceus, estudou na Universidade Católica Portuguesa, Lisboa (1973/74 – 1975-76), deu aulas no referido seminário em 1976-77, frequentou a Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá, Colômbia (1978). Estudou, ainda, dois anos da licenciatura de Psicologia, na Universidade Católica Portuguesa, em Braga (2010/11-2011/12). Trabalhou na Autoridade Tributária desde 1982 até 2021 terminando a sua caminhada laboral como Chefe de Finanças em Cabeceiras de Basto.
E-mail: mbatoca@gmail.com
NATAL NA PEDREIRA
No lugar da Pedreira, na pequena aldeia de Vilarchão, situada na serra da Cabreira, todos os anos, depois do pôr-do-sol da véspera de Natal, surgia uma floresta mágica que desaparecia logo depois da meia-noite. Diziam que, no seu centro, os mais corajosos poderiam encontrar uma fada que realizava um único desejo. Contudo, não era gratuito; o preço a pagar era um gesto de bondade aprovado pela fada.
Natália, uma menina tímida, de grandes e curiosos olhos esmeralda, ouvia esta história desde que se lembrava de ser gente. Todos os anos, no dia 24 de Dezembro, passava horas a imaginar como seria a tal floresta, os caminhos encantados, a luz suave que os antigos diziam cobrir os ramos das árvores como um manto de estrelas. Mas, até então, era apenas uma ideia distante, um sonho no qual nunca tinha verdadeiramente acreditado, talvez porque receava aventurar-se nesse mundo mágico.
Este ano, porém, tudo mudara. Tomás, o pequeno irmãozinho de cabelos encaracolados e riso fácil, estava agora deitado, com o rosto pálido e triste, a voz fraca e o corpo sem forças. Antes da doença, era ele quem enchia a casa de alegria. Natália recordava-se de como, no Natal anterior, ele a acordara ainda de madrugada, saltando na sua cama com entusiasmo, ansioso para abrir as prendas. 'É Natal, Nat! É Natal!', gritava ele, usando a alcunha carinhosa que só ele lhe dava. Os dois tinham passado a manhã inteira a brincar com os novos brinquedos, construindo histórias fantásticas com os soldadinhos de chumbo dele e a casa de bonecas dela.
Agora, o quarto do menino estava demasiado silencioso, os seus brinquedos abandonados num canto, cobertos por uma ténue camada de pó. A mãe, de sorriso cansado, esforçava-se por manter o espírito festivo, enfeitando a casa e contando histórias à volta da lareira, mas Natália via nos seus olhos uma tristeza profunda. Sabia que só poderia salvar o Natal se encontrasse uma forma de o curar. Mas como? Onde iria buscar essa cura?
Na véspera de Natal, enquanto a aldeia se preparava para a ceia e os sinos ecoavam ao longe, Natália tomou uma decisão. Com o coração aos pulos, espreitou para o quarto do irmão. Tomás dormia, inquieto, a testa húmida de febre. Deu-lhe um beijo suave na face quente e sussurrou: 'Vou trazer-te o melhor presente de Natal de sempre, maninho.'
Envolveu-se no casaco de lã grosso e no cachecol multicolorido, ambos tricotados pela avó Matilde - aquele mesmo cachecol que o Tomás adorava roubar-lhe nas manhãs frias para brincar aos fantasmas - e saiu de casa sem fazer ruído. A neve caía suavemente, cobrindo a aldeia num manto de brancura, como se fosse um mar de algodão. Com um último olhar para a casa, onde a mãe, com o coração a sangrar, tentava preparar os pratos tradicionais da Consoada, Natália avançou decidida, na esperança de voltar com boas novas, em direcção à floresta mágica.
Parou à entrada da floresta. O portal cintilante erguia-se diante de si, entrelaçado pelos ramos e folhas geladas, como se guardasse um segredo antigo e temível. Sentiu o coração bater com força e, pela primeira vez, o medo toldou-lhe a coragem. "E se tudo isto não passar de uma história?", pensou, o corpo a tremer não só pelo frio, mas pela incerteza. Lembrou-se de todas as vezes que ouvira os mais velhos falarem da floresta mágica – "Quem se aventura por estes caminhos, não volta igual…" –, e um arrepio percorreu-lhe a espinha. Imaginou o irmão, tão frágil e febril, e uma dúvida dolorosa invadiu-a: "Estarei a fazer o que está certo? E se não encontrar nada? E se me perder?"
Mas, no fundo do peito, sentiu o eco suave da voz de Tomás, que, em anos anteriores, a chamara tantas vezes para brincar, para partilhar sorrisos e aventuras. A imagem dele, agora inerte na cama, substituiu as sombras do medo com uma chama de determinação e coragem. Natália inspirou fundo, limpou as lágrimas que lhe embaciavam a visão e, num sussurro, prometeu ao irmão: "Vou trazer-te de volta, maninho." Com as mãos frias agarradas ao cachecol e o coração ainda hesitante, deu o primeiro passo para dentro da floresta.
Sentiu o coração bater mais forte; o frio fazia-lhe tremer as mãos e condensava o vapor do seu hálito como se a quisesse impedir de ver mais além. A neve que descia do céu escuro pontilhava-lhe a face. Mas ela apertou o casaco, ajustou o cachecol e avançou, determinada, de olhos fixos no caminho que se estendia, coberto de neve imaculada.
De repente, uma coruja branca como a própria neve poisou num dos ramos baixos, fixando-a com olhos dourados e penetrantes. "Volta para trás, pequena", parecia dizer aquele olhar profundo e sábio. Por um momento, Natália hesitou. E se a história da fada não passasse de um conto antigo? E se estivesse a arriscar-se por nada? Mas a imagem do Tomás, deitado na sua cama, ardendo em febre, varreu-lhe as dúvidas da mente. Endireitou as costas e deu um passo em frente. A coruja soltou um pio suave e, num bater silencioso de asas, desapareceu na escuridão da noite, deixando cair uma única pena que rodopiou no ar até pousar suavemente no manto branco aos pés da menina.
Natália pegou na pena, sentindo a sua suavidade entre os dedos. Lembrou-se das histórias que ouvira sobre corujas serem mensageiras de sabedoria e protecção. Guardou a pena no bolso, como um talismã para a sua jornada.
À medida que avançava pela floresta, tudo ao seu redor se transformava. As árvores, altas e imponentes, pareciam sussurrar-lhe segredos antigos, carregados de uma sabedoria que escapava ao tempo. Pequenas luzes, semelhantes a estrelas, dançavam pelos ramos, lançando reflexos suaves no chão e polvilhando o ar com leitosos pontos de brilho. O ar exalava um aroma familiar e acolhedor de canela e pinheiro, mas também algo indefinível, como se uma magia invisível a envolvesse.
Aos poucos, uma vaga de calor ameno acariciava-lhe a face rosada, como leves toques de perfumadas pétalas de flor de laranjeira. A cada passo, essa suavidade afastava a frialdade inicial que lhe mordera a pele, como se a floresta, agora, a recebesse em braços acolhedores. Natália sentiu uma ligação profunda com a natureza à sua volta, como se cada árvore, cada floco de neve, cada estrela brilhante no céu estivesse ali para a guiar na sua missão.
Ao longe, ouviu um som que lhe aqueceu o coração: uma melodia leve, quase etérea, parecendo brotar de instrumentos de cristal dispostos ao seu redor, como se a própria floresta cantasse, encorajando-a a avançar e acolhendo-a no seu seio mágico.
Fascinada, seguiu o som até uma clareira. No centro, vislumbrou uma pequena criatura de asas translúcidas, que reluziam à luz suave da lua, tremeluzindo com cada batida delicada.
A criatura aproximou-se, voando com graciosidade, e Natália pôde ver que era uma fada — uma fada do Inverno, com olhos cintilantes como gelo sob o luar e uma expressão de serena bondade. Era do tamanho da palma da sua mão e observava-a com uma curiosidade gentil.
— Bem-vinda, linda menina. Como te chamas?
— Sou a Natália — respondeu a menina, quase num sussurro, ainda sem acreditar na visão diante de si.
— Porque estás aqui, Natália? — perguntou a fada, numa voz suave e melodiosa, como o vento a deslizar entre trémulas folhas.
Natália, que até então pensara estar preparada, sentiu a voz embargar-se-lhe de emoção. Respirou fundo e, com um tímido fio de voz, murmurou:
— O meu irmão está doente… muito doente. Preciso da tua ajuda… quero que o cures, por favor.
A fada fitou-a em silêncio, como se tentasse ver-lhe a alma, perscrutando-lhe o coração. Os seus olhos faiscavam com um brilho antigo e enigmático. Em seguida, começou a rodopiar lentamente à volta de Natália, três voltas graciosas que deixaram no ar uma delicada poeira luminosa. Ao fim da última volta, a fada parou e fixou-a com um olhar sereno, mas profundo. Natália percebeu então que o seu pedido não seria atendido sem um sacrifício. Após um longo momento, a fada falou, com uma voz suave mas firme:
— O teu desejo poderá ser concedido, mas há um preço. – Fez nova pausa que trepou pelo peito de Natália e se lhe alojou na garganta, apertando-a. – Deves oferecer um gesto de bondade, algo simples mas sincero, que seja verdadeiramente importante para ti.
Natália baixou o olhar, pensativa. O que poderia dar que fosse verdadeiramente valioso? A fada, uma criatura mágica e antiga, não precisava de nada que uma simples menina pudesse oferecer. Sentiu-se pequena e desamparada, questionando se teria algo que pudesse realmente importar. A sua mente viajou por possibilidades — talvez pudesse prometer visitar os doentes da aldeia, mas, sendo tão nova, que consolo poderia realmente trazer-lhes? Mordeu o lábio, sentindo o peso do desafio imposto pela fada, e, numa prece silenciosa, pediu-lhe ajuda para encontrar uma resposta.
Uma brisa suave agitou as pequenas luzes dançantes que rodeavam Natália, e uma delas pareceu pousar suavemente sobre a sua cabeça, como um toque de inspiração. Foi então que uma ideia lhe iluminou a mente, clara e brilhante como o primeiro raio de sol. Os brinquedos! O seu rosto transfigurou-se de alegria, e o coração bateu-lhe com força ao pensar nas crianças da aldeia — aquelas que nunca recebiam presentes de Natal, que olhavam as janelas das casas alheias, sonhando com brinquedos que nunca teriam. Era isso! Ela poderia abdicar dos seus presentes, que tanto significavam para si, e partilhá-los com quem não tinha nada. Hesitou uma fracção de segundo, despedindo-se dos brinquedos que já não receberia, e quase gritou:
— Os brinquedos! — exclamou, a voz trémula de emoção. — Os brinquedos que vou receber esta noite. Quero que os leves e os distribuas por todas as crianças da aldeia que não tenham presentes.
A fada sorriu, e o seu olhar brilhou de aprovação, como se aquele gesto simples tivesse desbloqueado um segredo profundo e mágico. Com um movimento gracioso, aproximou-se de Natália e tocou-lhe na mão, espalhando uma poeira luminosa que envolveu a menina num calor suave e reconfortante.
Satisfeita com a decisão da menina, a fada desapareceu com um último gesto gracioso, deixando no ar um brilho suave que envolveu Natália e se espalhou à sua volta como um manto de luzes. Sentiu o coração aquecer e foi inundada por uma paz profunda, como se tivesse tocado em algo verdadeiramente sagrado. E, com essa paz e a certeza de que este Natal seria diferente de todos os outros, regressou ao calor da casa, sabendo no seu íntimo que toda a sua família seria abençoada por esse sentimento tão belo de felicidade.
Natália acordou, na manhã de Natal, ao som da mãe, que, com uma alegria contida, chamava por Tomás. Ao abrir os olhos, viu-o de pé, sorridente e com a saúde renovada. Ele correu para a mãe, envolvendo-a num abraço apertado e silencioso. Maria — assim se chamava a mãe — quase desfaleceu de alegria ao perceber que o seu pequenino estava curado. Sentiu as suas forças renovarem-se, e o seu peito transbordou de amor, alegria e gratidão: o seu menino sarara e expulsara-lhe a dor que a mirrara durante tanto tempo.
Quando saíram para a rua, Natália ouviu o som de risos infantis que ecoavam pela aldeia. As crianças brincavam com os inesperados brinquedos que haviam aparecido misteriosamente junto às suas portas. Foi então que Natália percebeu que o seu gesto de bondade não só havia salvado o seu irmão, como também devolvera a alegria do Natal a toda a aldeia.
O Córrego
Havia um córrego estreito que desaguava nos fundos da minha casa. Esse pequeno fio atravessava o muro de plantas, fazendo surgir uma pequena poça em frente ao degrau de entrada da cozinha, ali permanecendo imóvel (eu lembro que estranhava essa imobilidade). A água chegava já podre, mas isso era um dado que só tornava mais viris as longas e vespertinas narrativas de bonecos e mãos enlameados, de montanhas e fortes sendo escalados, de soldados mortos no cume das colinas, tudo independente dos berros de minha mãe, que me chegavam de súbito. Que aliás só flagrava o clímax de cada aventura assim que voltava da casa de Dona Minerva – às vezes com uma sacola de bonecos que lhe davam.
Não tínhamos banheiro, usávamos uma greta no quintal que, nos dias de chuva, misturava-se ao filete que demarcava a fronteira pra além daquele mundinho quente e apertado em que vivíamos. Eu só me dava conta dessa mistura já no meio das batalhas no lodaçal. Não possuo, no entanto, uma recordação ruim daqueles tempos, e por assim foi até pouco depois de minha adolescência, quando acordei e ouvi o ruído das dragas.
- Que isso?
-Tão pavimentando a área.
Da janela eu via os caminhões de terraplanagem à distância, próximos à entrada da vila, o que era motivo de comemoração para todos ("finalmente a urbanização chegaria ali", ninguém mais ia ter vergonha de dizer onde morava, todos pensavam com furor novelesco). A essa altura eu já tinha uns 19, e nada de muito importante havia acontecido. Eu observava aquela casa, onde agora eu morava sozinho, com uma nostalgia que me impossibilitava grandes arroubos de mudança. Isso me incomodava, pois nada daquilo correspondia ao modelo de homem que um dia imaginei representar. Eu me agarrava com afeto às folhagens que encobriam o resíduo de córrego que por ali ainda passava. Sabia que seus dias estavam contados com o aterramento de toda aquela extensão, e isso poderia ser bom pra mim, mas não sem que me acometesse um desses apertos que ocorrem quando se perde o emblema de uma singularidade, talvez a única conquistada até então.
Lembro-me de uma manhã em que nada aconteceu. Apenas o ruído cada vez mais alto dos tratores e a trêmula linha divisória que fazia sangrar a visão de quem focasse por tempo demais o ressecado muro. Eu tomava café sentado no degrau. Era terça-feira. A casa parecia mais entulhada de tralhas do que nunca. Quadrinhos amarelados sem capa se misturavam a sacolas de mercado, notas fiscais e panos de chão. Para fazer o tempo passar, eu sentava no velho degrau e rememorava o tempo em que dedicava horas àquele veio de água, que continuava ali desaguando, agora próximo aos meus pés. Exatamente nesse dia eu tive uma ideia, na verdade uma ideia que se projetara há tempos, mas tomava forma agora com a proximidade daqueles veículos. Eu precisava saber de onde vinha esse córrego, essa fonte de água que nunca deixou de cessar. Talvez eu não tivesse nem mais um dia para chegar a essa nascente que, reconheço com vergonha, imaginava cristalina. Olhei para a borda do muro e minha visão esmoreceu com violência. Senti uma sonolência terrível e fui pra cama.
Eram 4:15 da manhã. O ruído das dragas não me deixava dormir em paz. Levantei do colchonete encharcado de suor. Tomei um banho, fiz um café e atravessei o portão.
A claridade da noite estrelada parecia tornar água pura aquele estreito filete, e isso facilitava meus passos. Eu o seguia na direção oposta ao maquinário, mas, paradoxalmente, quanto mais eu andava, mais ensurdecedor era o barulho. Isso me fazia apressar, alentado pela refrescância da madrugada. Quase toda a favela dormia, e os poucos que por ali passavam pra pegar o primeiro trem, o faziam em direção contrária à minha. Os primeiros rostos eram conhecidos, e me olhavam atônitos. Cumprimentei alguns. Mas nada disso importava. Eu já estava a uma distância de casa que parecia não mais conseguir enxergá-la (apenas uma placa de alumínio remendando a telha denunciava seu paradeiro). Sei que, depois de voltar meu olhar para trás, parte do meu desejo se esvaiu, e quase fiz o retorno. Procurei obscurecer as razões e simplesmente continuar andando. Andando, andando, andando, por mais que eu já nem tivesse mais certeza de existir um córrego por onde eu passava. Por vezes sua visão era tão diminuta que eu tinha que voltar alguns passos para me reposicionar.
Os primeiros raios da manhã surgiam como flechas de fogo nos olhos. Recordo-me de ultrapassar uma ponte que ficava sobre uma enorme lixeira. O córrego também a atravessava. Era um terreno baldio imundo, repleto de mato e guimbas de cigarro e maconha, mas aquela parca vegetação parecia encorpar a já quase invisível língua d’água. Eu não tinha mais noção de horas, tudo o que eu queria era achar a maldita fonte. O peso das considerações mais sensatas, menos volúveis, de minutos em minutos retornava e me atingia com força redobrada. Mas eu já estava muito longe para pensar em voltar. Meus pés doíam como nunca, e volta e meia eu tinha que fechar meus olhos para não desalinhar a superfície das formas.
Aquele trecho não parecia com nada do que eu imaginava que houvesse para além da ponte. As casas iam se tornando escassas, e entre elas, várzeas cada vez mais amplas e completamente escalvadas em sua superfície. O sol excruciante embaçava meus olhos, fazendo-me fitar um horizonte cada vez mais enturvado, como aquele distante muro. Eu mirava as gotas do meu suor por sobre a pequena faixa, na esperança de fazê-la avolumar e aliviar um pouco o esforço de tentar achá-la. Mas pareciam evaporar antes de atingir o chão. O córrego, esse continuava úmido.
As lágrimas transformavam a planície num imenso borrão, como uma tela derretida. Arrisquei um olhar pra trás e não vi mais nada. Apenas a linha de um deserto. Considerei esse fato comum, já que meus olhos haviam se desacostumado com tudo que não fosse o filete d’água, e segui meu rumo. Continuei por horas e horas andando, inclusive já sem esperança de voltar por aquele mesmo caminho – aliás, sem esperanças de voltar. Minhas pernas tremiam de dor, a cabeça queimava como o inferno e tudo ao meu redor parecia volver. Precisava focar no córrego, nada além de seu segredo me importava mais, nada além de conseguir alcançar essa realidade que subjugava meus limites e me fazia crer em coisas que só bem mais adiante eu definiria.
Em volta não havia mais nada. Agora tudo era um imenso deserto. Eu precisava descansar um pouco, dormir, estava sujo e sangrando. Já não dava mais pra manter o prumo, então me ajoelhei e mantive o fluxo me rastejando, com cada vez mais lentidão. O fio de água por vezes se misturava ao meu sangue. Estar com o rosto próximo do pequeno sulco me fazia querer lambê-lo, ainda que sua borda mal ultrapassasse o limite do chão (que eu já não via). Permaneci ainda algumas horas me arrastando. Por um instante pensei ter morrido. Uma mulher alta passa em movimento perpendicular ao meu. E me ignora.
Não me recordo bem dos fatos que se seguiram entre o último espasmo de sofreguidão naquela zona erma e os que relato agora. A partir desse instante, a história se torna opaca e a metáfora contida nela menos insinua uma chegada do que um ponto de partida.
Como se há muito sua imagem crescesse na medida em que dele me aproximava, me deparo com um pequeno monte no centro do meu trajeto. Sua extensão lateral era relativamente ampla, mas não era por isso que eu não podia contorná-lo, e sim porque precisava seguir o córrego sem abandoná-lo por um segundo. O mundo estava turvo demais para pensar em me afastar do único sopro de existência que me mantinha desperto. De onde eu estava conseguia ouvir o ruído do serpeio da manancial. Aquela água me recobraria os sentidos, pensei. Recolhi as últimas sobras de vontade e me lancei frontalmente àquela árdua e derradeira empreitada.
O sol fritava minha pele, e a plataforma rochosa em que inutilmente me agarrava era íngreme demais pra manter a aderência do meu corpo. Tive a ideia – o que me soou incongruente, não a ideia em si, mas tê-la tido – de esfregar um pouco de sangue sobre a pedra, a fim de que o calor o secasse (o que levaria poucos segundos) e meu corpo aderisse com mais firmeza em sua superfície. Então retomei a subida, deixando um rastro ainda maior de sangue na medida em que meus joelhos fritavam sobre a rigidez da crosta, que parecia crepitar. Mas continuei subindo, isso que importava.
Enfim, chego ao cume. Olho para baixo. Não há nada.
Procuro qualquer sinal do mínimo desaguadouro que fosse, qualquer coisa que justificasse tudo aquilo. Nada. Nem mesmo o fio de água corria mais. Adiante e por toda a extensão que me circundava, o deserto. A princípio cogitei que tinha morrido sem perceber, já que não havia a presença do outro pra demarcar uma mudança de estágio.
No entanto, não aventei mais hipóteses. Num instante, tudo pareceu bem claro pra mim. E lentamente me pus a atravessar o enorme rochedo.
Lázaro Cassar é professor e escritor. Além de se dedicar ao ensino, oferece parte de suas energias ao incentivo da cultura, em especial, nas artes literárias. Sua luta está em fazer a mediação entre as artes e as pessoas.
PONTO DE CULTURA
No início da
Rua Cel. João Teles
"Ali onde passa o busão na Kennedy, perto da rodoviária velha, na rua do Coca, onde os dedos da gentrificação e da auto-promoção não se instalam, surge uma imagem, quixotesca, mas que representa a broca de quem ousa, com o que pode, perfurar o real".
AQUI A CULTURA ACONTECE
Livraria Córdula
"Vendemos livros, inspiramos novas ideias e fazemos bons amigos".
"Nosso acervo é específico em ciências humanas e literatura.
Você é apaixonado por livros? Tem sede de conhecimento? Gosta de se perder nas páginas de uma boa história?
Então, a Livraria Córdula é o lugar perfeito para você!"
Uma manhã escura e cheia de nuvens de chuva rodeiam a cidade anã na montanha de Borin, próxima à floresta de Haldir. Reinos vizinhos, mas não amigos. Enquanto os habitantes do reino de Borin, filho de Gorin, extraem belas pedras e minérios da profunda montanha em que vivem, seu filho Orin, se aventura pelas florestas em busca de nada mais nada menos do que histórias para contar aos seus filhos. Segundo Orin, a vida pacata de seu pai e avô não é o que um anão de respeito deveria querer para si. O pensamento do filho deixava Borin um tanto intrigado, já que o próprio já havia enfrentado algumas guerras por si só, mas o que mais preocupava o governante da cidade na montanha, eram suas aventuras sucederem na floresta de Haldir.
Orin, diferente de seu pai, não tinha nada contra os elfos, chegava até mesmo a admirar alguns das histórias que escutou na cidade dos homens. Mas Haldir era um elfo diferente daqueles que Orin ouviu falar nas histórias. O que Orin sabia era apenas que Haldir dominava as florestas e as redondezas. Existiam coisas sobre o nobre elfo que apenas os habitantes da floresta sabiam e ninguém ousava se aventurar na floresta durante a noite para descobrir. Um segredo que nem mesmo a nobreza de outros reinos élficos tinham ciência. Haldir escondia em seu reino, uma belíssima dama das águas. Não apenas uma elfa com habilidades excepcionais, mas uma elfa que não conhecia nada fora daquela floresta; uma elfa que não conhecia nada fora do reino de seu pai.
Orin não costumava se aventurar pela floresta durante a noite, essa era uma regra ditada por seu pai, avô e uma preciosa dica de todos da cidade dos homens. Guerreiros deveriam se aventurar ao extremo, era isso que Orin pensava e então certo dia, depois de Borin pegar no sono, o jovem herdeiro do trono saiu por entre as árvores à procura de sabe-se lá o que. Vozes tomaram sua mente, já um pouco perturbada pela penumbra e barulhos de animais. Orin deduziu estar ficando louco e julgou ser uma maldição por desobedecer e ter enganado seu pai, até que, por entre as árvores e iluminada pela luz do luar, surgiu em sua frente, flutuando sob as águas do pequeno riacho que refletia seu desespero, uma dama. Ela era alta, orelhas pontudas e tão pálida quanto a luz que a iluminava. Vestia roupas claras e seus fios eram tão escuros quanto o breu que Orin enfrentava alguns instantes atrás.
Orin estava petrificado; estava estupefato. A beleza daquela jovem elfa era tão exorbitante quanto as histórias terríveis que Orin escutava das bestas naquela floresta durante a noite. Queria perguntar seu nome; Orin não conseguia falar nem mesmo o seu próprio nome. Sua aparência estava longe de adequada para alguém diante de uma criatura tão imaculada. Sua barba ruiva destoando os fios quase loiros do seu cabelo; suas vestes nobres estavam sujas e com pequenos rasgos. Orin gostaria de estar com suas vestes de Mithril, mesmo que os elfos não reagissem bem à sua raça em relação ao metal. Então, quando os olhos do jovem anão se encontraram aos da dama da água, Orin sentiu seu último suspiro sair por entre seus lábios e ela sorriu para ele com calma. Seus traços delicados se acentuavam ao que a elfa se aproximava de Orin, ainda petrificado.
O ambiente ao redor se iluminava como se aquela jovem elfa manipulasse a luz da lua para onde quisesse iluminar. Enna era seu nome, e era a voz de Enna na cabeça de Orin o deixando desnorteado e petrificado desde que a viu. Orin se encontrava sem disposição física e psíquica para mover-se sem o querer de Enna acima do seu. Ela dominava seus pensamentos e movimentos, Orin apenas piscaria os olhos se Enna permitisse que ele piscasse.
Haldir não podia controlar a filha, por isso mantinha sua existência em segredo absoluto. Enna era forte como o mais forte dos soldados do exercício de Haldir; Enna era inteligente como o mais inteligente estrategista da floresta élfica. Todos que sabiam da existência da dama da água, adoravam e temiam Enna como uma líder acima mesmo de Haldir. Orin sabia da força descomunal de Haldir, por isso tomava cuidado para adentrar a floresta durante o dia, mas não imaginaria o que estava por encontrá-lo lá durante a noite.
A luz da lua que agora tomava conta do ambiente onde os dois estavam, escureceu ainda mais o coração e a mente de Orin, o deixando num vazio absoluto. Os animais que antes faziam barulhos tão altos dentro da cabeça de Orin, agora estavam num silêncio ensurdecedor e a única coisa que o anão escutava era a voz calma e assustadora de Enna dentro da sua cabeça lhe dizendo coisas sobre sua vida que ele mesmo não sabia ou não se lembrava. Ela falava coisas da sua infância, da sua juventude e do seu futuro; ela falava sobre a morte do seu pai em batalha contra Haldir e como a culpa seria apenas sua e uma lágrima involuntária caiu sob as bochechas de Orin ao ouvir isso.
Orin adentrar a floresta durante aquela noite foi um pecado mortal para seu pai e ele nunca se perdoaria. Ele viu a cabeça do seu pai rolar até seus pés para a espada élfica afiada de Haldir enquanto os olhos precisos de Enna assistia das profundezas da floresta e Orin se ajoelhava, fraquejando diante de um antigo inimigo. Orin não gostaria que esse futuro fosse o seu e do seu pai, queria resistir à hipnose de Enna, mas não sabia como fazer isso.
Haldir, que procurava pela filha naquela mesma noite em que Orin estava sendo torturado pela mesma, a encontrou prestes a levá-lo à loucura e, para a sorte de Orin, Haldir tirou Enna de perto. Sua intenção nunca foi proteger Orin, e sim proteger sua filha dos perigos da Terra Média que Orin trazia junto consigo, mas o que Haldir não sabia era que o maior perigo ali presente era sua própria filha.
Orin nunca falou para ninguém sobre Enna, enquanto Enna passou a entrar na mente de Orin durante todas as noites mesmo longe do mesmo. Orin nunca mais teve uma noite de sono como anteriormente. Escondeu a história da sua visita à floresta élfica durante aquela noite até o dia de sua morte, pouco após encontrar-se em completo estado de loucura. Enna mudou Orin, suas aventuras e colocou fim a linhagem de Gorin. Haldir jurou proteger a filha até o último dia da vida de Orin, sentindo-se em paz apenas no dia de sua morte. Enna visitou o túmulo de Orin, próximo à floresta e levou a luz da lua em seu encontro pela última vez.
Ana Luclécia é escritora, poetisa e estudante de Letras pelo Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Nascida e criada em Pariconha, Alagoas, Ana dedica-se à literatura como forma de resgatar memórias, dar voz às experiências humanas e explorar as conexões entre palavras e emoções. Seus textos frequentemente mergulham no universo da oralidade, da fantasia e dos mistérios da vida cotidiana, refletindo sua paixão pela escrita criativa e pela cultura nordestina.
Instagram: @aluclecia
E-mail para contato: analuclecia96letrasufal@gmail.com
Entre o Silêncio e o Mar
Por Ana Luclécia da Silva Santos
A pequena vila de Salinares, escondida entre as dunas e a imensidão do oceano, vivia imersa em uma quietude peculiar. Não era o tipo de silêncio que incomodava, mas um que parecia guardar segredos tão antigos quanto o próprio tempo. Naquele lugar, cada morador carregava nos olhos o peso de histórias que jamais eram ditas em voz alta.
Entre essas histórias estava a de Marina, uma jovem de cabelos tão negros quanto o céu antes da tempestade e olhos que refletiam o verde profundo das águas salgadas. Marina tinha nascido e crescido em Salinares, mas, desde criança, carregava a estranha fama de ouvir o que ninguém mais ouvia. “A voz do mar”, diziam os pescadores, com um misto de reverência e medo. Ela podia prever tempestades, encontrar redes perdidas e, mais impressionante de tudo, sempre sabia o momento exato em que um barco precisava voltar antes que fosse tarde demais.
Apesar de ser vista como uma espécie de bênção para o vilarejo, Marina sentia o peso dessa conexão. As vozes que escutava não eram apenas murmúrios ou canções. Eram lamentos, segredos e, às vezes, advertências sombrias. Naquela manhã em que tudo mudou, ela estava sentada na beira do penhasco que dava vista para a vastidão azul. O vento sibilava suave, e as ondas, sempre tão familiares, pareciam inquietas. Foi quando ela ouviu o chamado.
“Ajude-nos...”
O som era diferente de tudo que já tinha experimentado. Não era o sussurro habitual das ondas ou o rugido distante de uma tempestade. Era um clamor humano, carregado de desespero. Marina fechou os olhos, tentando se concentrar. O chamado se repetiu, e ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Era um aviso, e ela sabia que não podia ignorá-lo.
Ao retornar para a vila, encontrou os pescadores preparando suas embarcações. O céu estava claro, mas Marina sabia que aquilo era enganoso. "Vocês não podem sair hoje", disse ela, a voz firme. Os homens pararam, trocando olhares desconfiados.
"Mas o mar está calmo, Marina", argumentou Seu Raul, o pescador mais experiente. "Não há sinal de perigo."
Marina respirou fundo, sentindo o peso de suas palavras. "Eu ouvi. Algo está errado. Se saírem hoje, não voltarão."
O silêncio tomou conta do cais. Eles já haviam aprendido a não duvidar de Marina, mas era difícil aceitar um presságio quando tudo parecia tão normal. Ainda assim, alguns desistiram de sair, preferindo não arriscar. Outros, no entanto, acreditaram que era apenas paranoia.
O dia passou, e Marina não conseguia tirar da cabeça a sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer. Quando o sol começou a se pôr, os primeiros sinais apareceram. Nuvens escuras surgiram no horizonte, movendo-se rápido demais para serem naturais. O vento aumentou, e o cheiro de sal no ar tornou-se mais forte. A tempestade chegou com uma fúria que ninguém esperava.
Durante toda a noite, Marina ficou na praia, olhando para o mar. As ondas se erguiam como montanhas, e os trovões pareciam rasgar o céu. Ela sabia que aqueles que haviam desafiado o aviso estavam em perigo, mas havia algo mais. O chamado que ouvira pela manhã ainda ecoava em sua mente.
Quando a tempestade finalmente cessou, os moradores começaram a sair de suas casas, avaliando os estragos. Alguns barcos estavam destruídos, mas o pior foi a ausência de três embarcações que não retornaram. Marina sentiu uma culpa esmagadora. Talvez pudesse ter feito mais para convencê-los a ficar.
Nos dias que se seguiram, os corpos começaram a aparecer, trazidos pelas correntes. Mas havia algo estranho. Junto com os pescadores perdidos, surgiram outros corpos, desconhecidos, com roupas antigas e expressões que pareciam congeladas no tempo. Eram como figuras saídas de uma lenda, e Marina sabia que aquilo não era coincidência.
Determinada a entender o que estava acontecendo, ela começou a investigar. Conversou com os mais velhos da vila, buscando histórias que pudessem explicar o mistério. Foi então que ouviu falar da lenda de Salinares. Há séculos, um navio havia naufragado naquelas águas durante uma tempestade violenta. Diziam que era uma embarcação cheia de riquezas, mas também de pecados. Os marinheiros, em desespero, haviam feito um pacto com o mar, oferecendo suas almas em troca de salvação. O pacto, no entanto, nunca fora cumprido, e suas almas continuavam presas, aguardando redenção.
Marina sentiu um frio percorrer sua espinha. As vozes que ouvira não eram apenas de pescadores. Eram deles. Os marinheiros do passado. E agora, de alguma forma, estavam ligados aos acontecimentos recentes.
Naquela noite, ela voltou ao penhasco, levando consigo um amuleto que sua avó lhe dera anos atrás, dizendo que a protegeria das forças do mar. Sentou-se na beira, fechando os olhos e deixando que o som das ondas a envolvesse. "Estou aqui", sussurrou. "Diga-me o que preciso fazer."
As vozes vieram, mais claras do que nunca. Elas contaram sua história, pedindo perdão e libertação. Marina sabia que o que pediam era perigoso, mas também sabia que era a única forma de trazer paz ao vilarejo. O mar não descansaria enquanto aquelas almas continuassem presas.
Na manhã seguinte, Marina reuniu os moradores. Contou-lhes tudo, desde o chamado até a lenda. Muitos ficaram assustados, mas confiaram nela. Juntos, construíram uma oferenda, seguindo as instruções que Marina recebera. Era um ritual simples, mas carregado de significado.
Quando lançaram a oferenda ao mar, o céu se abriu, e um arco-íris atravessou as nuvens. As águas, antes tão agitadas, ficaram incrivelmente calmas. Marina sentiu uma paz que nunca havia experimentado. As vozes se foram, e o silêncio que restou era diferente. Não era mais um silêncio de segredos, mas de um ciclo que finalmente se fechara.
A partir daquele dia, a vila de Salinares prosperou como nunca. O mar, antes imprevisível, tornou-se generoso, e os moradores, antes cautelosos, aprenderam a respeitar e agradecer pelas dádivas que recebiam. Quanto a Marina, continuou ouvindo o mar, mas agora, as vozes eram diferentes. Eram canções, não lamentos.
Ela sabia que sua ligação com o oceano nunca terminaria, mas também sabia que, finalmente, havia encontrado seu lugar entre o silêncio e o mar.
Em um espaço vazio, coberto de escuridão, sem cheiro, sem tato e sem emoções, existia um velho senhor. Não se sabia sua idade, mas sabíamos que ali só existia ele. Em sua presença, havia um humilde pincel e um quadro em branco. Ele nunca havia pintado nada, mas, estando só, decidiu fazer uma pintura para lhe acompanhar. Então, o ancião passou seu pincel pelo quadro várias e várias vezes, de cima a baixo, da esquerda à direita. Começou pela parte de cima e foi adicionando detalhes únicos à sua criação. Após certo tempo, o homem terminou sua pintura e viu que havia criado um novo ser. Nomeou-o de pássaro e assinou sua pintura com o nome de Gregor, mesmo sabendo que ninguém a veria. Feliz, o homem admirou sua pintura, acrescentando alguns detalhes. Emocionado, tentou dar vida à criação. O homem usou um fio de seu cabelo, pintou-o de azul e colou-o no quadro. Após algum tempo, ele viu que sua ideia deu certo! O pássaro saiu voando, e o homem não conseguiu alcançá-lo. Sentiu-se triste e feliz ao mesmo tempo, pois sua criação havia ganhado vida própria. Feliz, Gregor decidiu criar alguém parecido com ele, mas sem um lugar para colocá-lo, criou um planeta e o nomeou de Ceteni. Assim, Gregor, o ancião, criou alguém parecido consigo e o apelidou de Rog. Após essas criações, Gregor continuou a criar mais seres e habitats para eles. Entre suas criações estavam os répteis, invertebrados, aves e anfíbios. O cenário de Ceteni encheu-se de vida e cores, uma verdadeira sinfonia de formas e sons que antes não existiam no vazio. Gregor observava tudo com admiração e orgulho. Depois de algum tempo, Gregor decidiu expandir suas criações. Criou servos para ajudá-lo e os nomeou de Akinaki. Eles eram seres metafísicos, cuja essência cintilava como o luar, encarregados de cuidar dos outros seres, principalmente dos Rog, que nesse momento já tinham uma população de 30.000. Os Akinaki voavam graciosamente pelos céus de Ceteni, cuidando com zelo das florestas, rios e montanhas. Com algumas responsabilidades a menos, Gregor começou a criar novos planetas e novos seres pensantes, semelhantes aos Rog. Estrelas novas surgiam no firmamento, cada uma guardando segredos e mundos inexplorados. Contudo, com essas criações, os Rog ficaram apreensivos e preocupados por estarem cada vez mais esquecidos. Gregor, fascinado com suas criações e com o ego cada vez mais alto, deixou de cuidar das pequenas coisas. Todos estavam sofrendo sem sua presença, incluindo os Akinaki, que, mesmo sendo poderosos, não conseguiam alimentar suas criações. Com o passar do tempo, seus "reinos" ficaram tão grandes que Gregor se cansou e dormiu por 4 mil anos. Nesse período, seus seres sofreram por doenças, fome e sede. As florestas murcharam, os rios secaram, e a terra tornou-se árida e inóspita. Os Rogs, que antes viviam em harmonia, agora lutavam entre si pela sobrevivência. Eles se revoltaram e repudiaram Gregor, e até seus anjos se viraram contra ele. O velho Gregor, para se redimir, criou nada mais nada menos que uma réplica sua, mas com virtudes melhores. Ele foi enviado para Ceteni na esperança de ser seu mensageiro. Como isso seria uma tarefa difícil, Gregor lhe deu habilidades de cura, de fazer os mais maldosos dos Rog se voltarem a seu favor e de trazer paz à mente daqueles que se juntassem a ele. Ele ficou 66 anos na Terra, mas, depois de algum tempo, Rogs da terra onde ele estava se rebelaram contra ele e condenaram a ele e seus seguidores. Com uma virtude impecável, dispôs-se a morrer pelos seus seguidores e, principalmente, pelos que o condenaram. Ele foi morto com um golpe de machado. Muitas pessoas que haviam visto suas ações – como a cura de um cego, a transformação de água com cólera em vinho puro e de pedra em brioches – ficaram contentes e gritavam que Gregor e seu filho não seriam perdoados. Após três dias do ocorrido, seu filho ressuscitou sem a intervenção de Gregor. O criador ficou impressionado, já que isso nunca havia acontecido.
Após se reencontrar com alguns de seus seguidores, o filho de Gregor, agora auto-nomeado Brian, revoltou-se com o próprio pai que havia se recusado a salvá-lo. Ele deixou suas virtudes para trás e conseguiu salvar várias "almas" de Gregor. O criador e pai dele se revoltou e atacou a Terra com pragas, fome, guerra, sede e ganância.
Brian, ao perceber o caos e sofrimento causados pela revolta de Gregor, decidiu usar seu poder final para trazer paz. Ele convocou todos os Rogs, Akinaki e outros seres, formando uma aliança para deter Gregor. Com o poder da união e da esperança, conseguiram reverter as pragas e restaurar a harmonia em Ceteni. Gregor, vendo a força e a bondade de sua criação, arrependeu-se e decidiu abdicar de seu poder, entregando o destino de suas criações a Brian e aos seres que ele criou. Brian então estabeleceu uma nova era de paz e cooperação, onde todos viveram em equilíbrio.
Brian reuniu todos em um grande concílio nas montanhas sagradas de Ceteni, onde a natureza era exuberante e inspiradora. Ali, os Rogs, Akinaki e outros seres compartilharam suas histórias, dores e esperanças. Ao redor de uma fogueira, contaram como sobreviveram aos tempos de trevas e como desejavam reconstruir suas vidas em paz.
Cada ser presente no concílio trouxe algo de valor: conhecimento, habilidades, força, e principalmente, a vontade de viver em harmonia. Brian, com sua presença serena e imponente, ouviu cada relato com atenção. Ele sabia que a chave para o sucesso estava na união e na compreensão mútua.
Juntos, começaram a trabalhar para restaurar Ceteni. Os Akinaki, com seus poderes metafísicos, ajudaram a purificar os rios e reviver as florestas. Os Rogs, usando sua força e engenhosidade, reconstruíram vilarejos e criaram sistemas de cultivo que garantiam alimento para todos. Os novos seres pensantes, criados por Gregor, trouxeram consigo inovações e ideias que ajudaram a criar uma sociedade equilibrada e justa.
Aos poucos, o planeta voltou a florescer. As cicatrizes deixadas pelo abandono e pelas guerras foram sendo curadas, e uma nova era de prosperidade começou a se instaurar. Brian, sempre à frente, liderava com sabedoria e empatia, lembrando a todos da importância da união e da paz.
Gregor, agora um observador distante, via com orgulho e remorso o renascimento de suas criações. Ele sabia que havia cometido erros, mas também compreendia que, graças a Brian e à determinação dos seres de Ceteni, um novo capítulo estava sendo escrito. Ele decidiu não interferir mais diretamente, mas manter-se como um guardião silencioso, garantindo que os erros do passado não se repetissem.
A nova era em Ceteni foi marcada por festivais e celebrações, onde todos os seres se reuniam para comemorar a vida e a paz. A arte, a música e a cultura floresceram,
Por: Angelo Gabriel
02/11/2024
Angelo Gabriel recria a criação em uma prosa clara e direta expressando toda sua poiesis - a arte de criar - para refigurar um dos temas mais significativos para a humanidade, A Criação.
Quase tocando no sagrado, se aproximando do místico universal, oferece ao público envolto na narrativa real o fio final da esperança apresentado no desdobrar desse conto ficcional.
Nesta semana temos o prazer de apresentar o conto Areia, de Bruno Vianna.
Nesse conto, Bruno Vianna usa toda sua poética para encantar os leitores.
Bruno Vianna é ator, escritor, um poeta por excelência, tem trabalhos publicados como o ótimo livro Paisagens, e em breve lançará Condomínio Mínimo, livro de contos pela Editora Ópera.
Contatos: pelo Instagram @brunnoviannarj ou pelo e-mail brunno_vianna@yahoo.com.br.
ESPAÇO UM CONTO POR VEZ
Metrópole Horror
Adrian Olof
A vida é um risco. Existir e não viver é um castigo. A violência sempre está nos rodeando como uma lâmina afiada ou um projétil veloz a encontrar qualquer alvo atento ou distraído como acontece em toda grande cidade.
“Deparamo-nos com um horror”. Assim foi noticiado o crime. Vazou do relatório legista, caiu na grande mídia, depois fez grande repercussão nas redes sociais. O corpo com o tímpano perfurado por um longo objeto pontiagudo; o crânio cerrado a deixar exposta a cavidade vazia, sem o cérebro, fora levado. Marcas de resistência, de vã luta, nenhuma pista encontrada.
A segurança da Família
Resignada, depois de quase dois meses cuidando do pai ferido em um descuido nas ruas, esse seria o primeiro final de semana em que Cláudia podia sair para se divertir e curtir a sua tenra idade, mas do que isso, sair do confinamento era uma necessidade.
― Minha filha ― exclamou o pai ―, venha aqui um instante.
― Sim meu pai, já vou ― respondeu Cláudia. Saiu segundos depois do quarto vestida para balada de sexta. ― Fale papai.
― Vá se divertir, vá ― disse o pai se aproximando em uma cadeira de rodas ―, mas tenha cuidado.
― Não se preocupe, papai ― respondeu a jovem, o pai notou um sorriso matreiro e meigo naquele belo rosto. ― Fique tranquilo, meu paipai.
― Um descuido, olha o que aconteceu comigo! ― redarguiu o pai a olhar fixo nos olhos tenros da filha ― mas eu não quero continuar sendo um peso para você, filha.
― Nunca será papai, nunca será um peso ― respondeu Cláudia balançando a cabeça. ― Te amo, você sabe, não?
― Logo sairei dessa prisão e nos divertiremos juntos... Como antes. ― O olhar do pai transbordou de uma acalorada esperança. ― Por enquanto, só te peço cuidado, a cidade está um risco.
― Sim, logo você ficará bom ― disse Cláudia já se dirigindo para a porta. ― Não se preocupe papai, sei me cuidar bem.
― Está levando tudo, Cláudia? ― perguntou sério a seguir a filha meio desajeitado até a porta.
― Sim, claro, já conferi ― respondeu, virou-se, inclinou-se e beijou a testa do pai. ― No máximo, retornarei no domingo. ― Saiu Cláudia sob o olhar ainda preocupado do pai.
Nas baladas
Impossível. A festa na casa das amigas não deu em nada para Cláudia. Suas três amigas até que se arrumaram. Duas curtiram um ou outro carinha, a outra ficou com uma jovem de beleza inusitada. Penetra na festa, desconhecida, até agradaria a Cláudia com ela ficar. Porém, assim o destino não quis. Da festa partiu Cláudia, e suas amigas, para uma boate perto da Lagoa. Ali também não deu em nada. De natural sedução sem esforço, sempre era Cláudia a primeira a se dar bem, mas não desta vez. Ela então decidiu ir embora.
― Não vai não, Claudinha! ― exclamou alto uma das amigas, já descompensada pelo álcool. ― Fique com a gente até o dia raiar, vamos festejar seu retorno...
― Ah, não, hoje não! ― Foi taxativa.
― Fica então mais um pouco, sairemos juntas ― disseram em coro as amigas, quase dissuadindo-a. ― Vamos, fica, sua vaca, fica, vaca...Vai.
― Pegarei um táxi, não se preocupem ― respondeu, abraçou e beijou cada uma das amigas como fosse uma última despedida, e partiu. ― Semana que vem tem mais. Tchaauu, suas putas!
Saiu rápido da Boite, estranhou pouco ser notada, talvez a brancura provocada pelas semanas de confinamento, fosse como fosse, o final de semana estava apenas no começo.
A vida deve ser vivida
Abandonou a regra de ouro, não retornar sozinha, além do mais, não pegou táxi algum. Caminhou solitária ao redor da Lagoa, pouca gente transitava naquela hora da madrugada. Dois moleques se aproximaram, olhares maliciosos, cheios de intenções, ela os notou, pouco se importou. A sirene da patrulha que por acaso ali passava os intimidaram, se foram tão rápido quanto se aproximaram. Dali Cláudia, como uma alma penada, pegou a estrada do Corte do Cantagalo, rota meio escura. Embora ladeada por prédios, a rua estava erma.
Naquele lugar, aquela bela silhueta de mulher insinuando-se na noite chamaria a atenção até do mais simplório humano. O ar estava leve, sem trânsito ou pessoas para quebrar o frescor do lugar. Um veículo despontou a cruzar rápido o Corte. O farol alto projetou sombras nas laterais, entre elas a sombra de Cláudia. O carro parou logo após passar por Cláudia em sentido contrário. De ré, passou acompanhá-la lado a lado.
― Vai para onde, moça? ― perguntou colocando o rosto quase para fora da janela do carro. ― Não precisa andar, se não quiser.
― Vou para o sentido oposto à correta direção de seu carro ― respondeu sem parar fingindo não olhar. ― Siga seu caminho, moço.
― Vamos entre, eu te levo para onde quiser ― insistiu sorrindo confiante em sua graça. Maneou a cabeça, mostrou a bela dentição. ― Não tenha medo, tenho dentes, mas não mordo não!
― Não te conheço, cara! ― Parou, olhou para ele com afinco: sorriso fácil, mas confiável; cabelo sedoso, saudável; cordão fino de ouro; relógio de marca no pulso. ― Qual é a tua?
― É, não me conhece, mas podemos nos conhecer... Eu sou do bem ― disse isso mordendo os lábios de forma involuntária ― sou Rodrigo, e seu nome, qual é? ― perguntou com olhos brilhantes, a moça não resistiu, e esboçou um sorriso. ― Vai, já disse, eu sou do bem.
― Cláudia, meu nome é Cláudia ― respondeu com seriedade. ― É sério, seu Rodrigo? ― perguntou. ― É essa a sua cantada?
― Venha, entre ― pediu com gentileza e com um agradável sorriso ― comigo é só paz e amor.
O clima noturno estava gostoso. Já no carro, antes de se dirigirem ao local pedido por Cláudia, as conversas fluíram bem, convenceram-se em esticar a madrugada para se divertirem como quaisquer jovens fazem. A juventude é uma bênção e deve ser aproveitada a cada oportunidade. Partiram para a estrada do Alto da Boa Vista enquanto conversavam efusivamente, Rodrigo estava munido de um charme irresistível, belo rapaz.
Sentiram sedutora mútua atração, exalava uma química natural entre os dois. Um lugar ideal, o mirante era recuado da estrada, ali poderiam relaxar. O contraste entre a lua e as nuvens pintava aquela formidável noite de um colorido especial. O rádio baixinho produziu um clima intimista, aconchegante, aquecendo e instigando os corpos a romperem a falsa timidez. Delícia de afagos, carinhos inocentes, abraços apertados, beijos apaixonados de vontade, para-brisas embaçados.
Intuitivamente entregaram-se ao prazer. Quase no mais íntimo momento, um movimento ligeiro, a fina agulha foi enterrada por trás na base do pescoço, o líquido paralisante penetrou na medula, efeito imediato. Via e ouvia tudo, mas os braços caídos, nenhuma parte do corpo conseguia se mover, as batidas do coração estavam descontroladas, a mente explodia em fleches de terror, era o medo.
― Calma! Não sentirá nenhuma dor ― grunhidos eram a resposta do apavorante sentimento. ― Já disse, não sentirá nenhuma dor, apenas terror. Assim fica mais saboroso.
― Uor, uor, uor ... ― grunhiu e continuou com lágrimas descendo dos olhos, mediante um contínuo zumbido de motor projetado para dentro da cabeça. ― Hum, hum, ah, hum...
― Já disse, não vai sofrer, mas tenho de fazer ― disse baixinho no ouvido ―, pois eu amo você a ponto de te comer.
Logo pela manhã, um grupo de caminhantes se deparou com tamanho horror no alto da Boa Vista. Belo lugar para perder a vida, se a morte não fosse tenebrosa. O modus operandi foi quase o mesmo. Ausente apenas a perfuração no tímpano. O corpo foi deixado com o tampão da cabeça jogado para o lado, ausência do cérebro, o sangue quase completamente drenado pela virilha. As mídias regulares e das redes sociais o apelidaram de “killer papa-cérebro”.
Ânsia
Viu a rua pela janela mais uma vez, havia no horizonte uma frágil luz do amanhecer, o pai passou toda a noite em tremendo sofrimento à espera da filha. Não fechou os olhos de ansiedade, o coração disparava de medo, o suor revelava seu maior temor, mas a cada barulho lá fora acendia a esperança em sua mente. Por fim, a porta foi aberta.
― Conseguiu, Cláudia, minha querida? ― perguntou o pai com os olhos vidrados. ― Fiquei preocupado. Ninguém te viu? E as câmeras?
― Claro pai! Coisa de profissional. Aprendi com o melhor ― respondeu Cláudia rindo e levantando a bolsa. ― Não deixei nada a desejar.
― Vá, divida para mim e você um bom pedaço ― disse o pai já lambendo os lábios. ― Você é ótima!
― Sim papai, vou regalo com um pouco mais de sangue, esse é bom, não tem dor, apenas medo e horror ― disse a lamber os dedos e a colocar a iguaria em uma tigela. ― Ainda está quentinho!
― É assim, logo ficarei bom! ― falou o pai já com a boca cheia... ― Mais um pouco, mais um pouco.
A polícia nada encontrou. As redes sociais horrorizaram a sociedade carioca com as imagens chocantes do resultado do crime. E assim se deu mais um final de semana nessa grande, bela e terrível metrópole chamada de Rio de Janeiro.
Biografia do autor:
Desconhecido.
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